Recesso de fim de ano: oportunidade perfeita para colocar as pernas em cima do sofá e retomar o hábito da leitura. Fundamental para reequilibrar as energias, principalmente depois do ano maluco que estamos (estamos mesmo?) deixando para trás.
Optei por duas obras recentes, ambas lidando com o assunto do momento: a pandemia de COVID-19. O primeiro, sobre o qual falo essa semana e semana que vem, é “Dez lições para um mundo pós-pandemia”, de Fareed Zakaria, ainda disponível apenas em inglês (Ten lessons for a post pandemic world), e lançado nos EUA em outubro de 2020. O assunto é longo, e por isso quebraremos o artigo em duas partes. O Segundo — sobre o qual falarei no futuro próximo — é “Pós-Corona: da crise à oportunidade”, de Scott Galloway, também disponível apenas em inglês (Post-Corona: from crisis to opportunity), lançado em novembro de 2020.
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A título de contextualização da obra “Dez lições para um mundo pós-pandemia”, seu autor, Fareed Zakaria é indiano, naturalizado americano, filho de um político local da cidade de Mumbai e de uma jornalista. Zakaria cursou a universidade nos EUA, graduando-se em Ciência Política pela prestigiosa Universidade de Yale e obtendo seu doutorado em estudos governamentais pela mais prestigiosa ainda Universidade de Harvard.
Após trabalhar como editor nas revistas Foreign Affairs, Newsweek e Time, Zakaria passou a ser colaborador da rede de notícias CNN, onde mais tarde se tornou âncora do programa semanal GPS – Global Public Square.
Ou seja: Fareed Zakaria é um acadêmico de renome, um editor respeitado, e um jornalista reconhecido, que depois de décadas observando profissionalmente o estado geopolítico do planeta que habitamos, se dispôs a colocar suas observações no papel acerca do que será o mundo após a pandemia. E o fez por meio de 10 “lições” que aprendeu/depreendeu de sua ampla atuação profissional. Vamos a elas.
Zakaria compara a ação humana sobre o planeta como um piloto em um carro de corridas que acelera vertiginosamente, ganhando cada vez mais velocidade pela pista afora, sem usar cinto de segurança.
Industrializamos o planeta sem nos preocuparmos com as consequências naturais que se amontoam; criamos mecanismos cada vez mais complexos a serviço dos ganhos econômicos no exercício do capitalismo contemporâneo sem darmos atenção às crises gigantes que se avolumam lentamente sob a superfície; ideologias se radicalizam, polarizando nações inteiras, mesmo sob pena de enxergarmos inimigos onde na verdade há pessoas com os mesmos direitos e deveres que nós mesmos. Os exemplos são muitos, e — segundo Zakaria — são resultados da lei dos dois terços originalmente criada para sistemas de informática: você pode ter apenas duas características dessas três em um sistema qualquer: (1) o sistema pode ser aberto, (2) o sistema pode ser rápido, (3) o sistema pode ser estável. Em termos gerais temos optado pelo sistema aberto (democrático, pouco limitado por regulamentos) e rápido (gera, aceita e absorve mudanças de forma bastante ágil e flexível, como no caso dos avanços tecnológicos).
O resultado é que o mundo de hoje não é um sistema estável. O piloto aumenta a velocidade a cada segundo que passa, fazendo com que cresça cada vez mais a probabilidade de um acidente.
A pandemia de COVID-19 é, segundo Zakaria, mais um resultado dessa opção coletiva pela velocidade e abertura, em detrimento da estabilidade. E lembrando: temos acelerado esse carro de corrida deixando de lado o “detalhe” do cinto de segurança. A catástrofe da pandemia é o acidente inevitável, e a contagem crescente de corpos é o resultado mais que esperado.
A consequência para o futuro, segundo o autor, é que vamos ter que “apertar o cinto de segurança” daqui para frente, isto é, vamos ter que criar mecanismos para suportar as catástrofes que se projetam para o futuro, como no caso do desastre do clima que nos espera já para os próximos anos. O ideal seria que esse “apertar de cinto” ocorresse sob forma de mecanismos de prevenção, mas se não vierem — e há enormes indícios apontando para a possibilidade de não virem — é fundamental não nos iludirmos: vai doer. Apertar o cinto, nesse caso, é estarmos cientes de que outros problemas de envergadura global vão nos atingir.
Aqui Zakaria começa comparando a resposta à pandemia dada pelos EUA e contrastando esta resposta com as ações da China. Uma democracia versus um regime totalitário. O sucesso da China é contrastado com o fracasso americano, e o resultado que podemos observar com facilidade é a rápida retomada do crescimento da economia chinesa ao mesmo tempo em que a economia americana depende do consumo das classes mais abastadas e do adjutório financeiro dado pelo governo à população em geral.
O comparativo de Zakaria se expande e vemos outras democracias que tiveram mais sucesso na luta contra a COVID-19 — Coreia do Sul, Nova Zelândia, Austrália — enquanto outras também falharam ou demoraram a tomar medidas efetivas — Itália, Grã-Bretanha, Alemanha.
O Brasil é tristemente citado nesse capítulo, com nosso governante — Jair Bolsonaro — fazendo parte da triste “elite” dos negacionistas, que não só não tomaram as medidas adequadas para conter a pandemia, mas foram na direção diametralmente oposta, pregando o descumprimento do distanciamento social e do uso de máscaras como medidas preventivas. Claro que Bolsonaro está “em boa companhia” nesses quesitos, tendo como modelo principal o presidente americano Donald Trump.
No frigir dos ovos, o que vemos é que não são o governo democrático, a ideologia, a presença da direita ou da esquerda no leme da nação, o governo pequeno dos republicanos ou grande dos democratas os maiores responsáveis pelo sucesso ou fracasso na luta contra a COVID-19. O que faz a diferença é a qualidade das instituições, a coordenação entre os vários gabinetes/órgãos e — sobretudo — o alinhamento aos desenvolvimentos científicos e com os direcionamentos da Organização Mundial de Saúde.
Em suma: o que determina o sucesso de uma nação diante de uma crise não é a quantidade do governo, mas sim a qualidade das decisões tomadas. Essa qualidade não surge do populismo, do totalitarismo, do negacionismo, da falta de planejamento, das decisões eleitoreiras ou de qualquer outra coisa que não seja a ação competente do governo, dentro das instituições e dos limites da lei.
Vale para as ações durante a pandemia e, obviamente, valerá para qualquer outra ação governamental no futuro.
Adam Smith, o pai das ciências econômicas, postulou que a “mão invisível” do mercado é suficiente para regular a economia. Os preços sobem demais? Algum fornecedor vai rapidamente perceber a vantagem de oferecer descontos, e esse ato por si só desencadeia um processo de regulação dos preços que em pouco tempo retorna a situação à normalidade.
Esse mecanismo simples de autorregulação, em que pese funcionar em algumas situações, é no mais das vezes fantasioso. O poder regulador do mercado é frágil, imperfeito, parcial, submisso aos detentores do poder econômico. Mais de 240 anos depois da publicação de “A Riqueza das Nações” é difícil encontrarmos uma semana em que não tenhamos notícia de uma falha sensível no poder regulatório do mercado.
Nesse sentido, Zakaria aponta para o editorial de 3 de abril de 2020 do Financial Times — a publicação centenária que é sempre uma das maiores defensoras da liberdade dos mercados — em que se lê com clareza que as reformas liberalizantes das últimas décadas não têm sido eficientes para beneficiar a todos, e que os governos deverão assumir um papel regulador mais enfático, de forma a impedir que catástrofes como a provocada pela pandemia gerem problemas ainda mais sérios para a população em geral.
O capitalismo é uma das principais ferramentas de progresso da Humanidade, não há dúvida, mas como qualquer ferramenta, deve ser utilizado com responsabilidade. A foice que permite a colheita também pode ser utilizada para ferir. Não é culpa da foice, obviamente, que não tem preferências, mas sim de quem a empunhar com propósitos de violência. Assim é o mercado: uma ferramenta, que tanto pode ser deixada a seu curso — com potencial dano para a sociedade, em que pese a autopreservação do sistema — e que também pode ter seu curso de ação limitado.
Vejamos.
A reação mais prudente à pandemia é o isolamento social, aliado à higiene constante e ao uso de máscaras. Ocorre que em alguns casos é fundamental que a atividade econômica seja interrompida, o que tem efeitos profundos sobre a economia de uma nação. As teorias liberais do mercado demandam, mesmo no caso de uma pandemia, que o mercado não seja impedido de continuar seu curso. Infelizmente, o curso natural do mercado nessa situação tem consequências graves para a sociedade: mata um monte de gente, sobrecarrega o sistema de saúde, provoca problemas futuros enormes na própria economia.
Zakaria conclui, corretamente, que em situações de exceção extrema a autorregulação dos mercados não é suficiente para manter um curso produtivo para a sociedade. É necessário que o governo tenha à mão mecanismos que permitam interferir no curso do mercado (interrompendo-o, quando necessário) e ao mesmo tempo manter segurança da população.
Isso não é fácil nem barato, obviamente, e esses mecanismos não deveriam ser postos em ação a não ser em situações bem extremas (como no caso da COVID-19), mas é absolutamente fundamental que tais mecanismos estejam à disposição do governo, sob pena de vermos a situação de exceção sair do controle, se estender por mais tempo do que deveria, e causar mais dano à sociedade e à economia.
Nesse capítulo Zakaria explica o óbvio: em situações de exceção, é fundamental ouvir os especialistas. Sim, no caso da pandemia podemos citar alguns momentos — especialmente no início — em que os especialistas trocaram os pés pelas mãos. A OMS minimizou a pandemia no início de 2020, o Dr. Drauzio Varella disse em vídeo que não seria nada grave, e por aí vai.
Mas tomar esses erros da ciência como demonstração de que ciência não serve para nada é um erro grave. A ciência tem uma afirmação que se mostra bastante importante: “até onde sabemos”. Até onde sabemos, o universo tem 14 bilhões de anos; até onde sabemos, os dinossauros entraram em extinção por conta de um meteoro que caiu na Península de Yucatan 66 milhões de anos atrás; até onde sabemos, a substância mais dura a ocorrer na natureza é o diamante. E por aí vai. Isso significa que aprendemos muito, mas que em algum momento podemos aprender algo de novo que muda — para melhor! — nosso conhecimento. Os pronunciamentos feitos pelos especialistas no começo da pandemia podem não ter sido 100% corretos, mas eles são sempre a melhor fonte de conselhos.
Zakaria dá como exemplo a Tailândia, cujo Vice-Presidente coordenou sem falhas os esforços para conter a pandemia, e obteve sucesso. Ele é epidemiologista formado nos EUA, já havia sido Ministro da Saúde durante a epidemia de SARS, e — seguindo à risca as diretrizes científicas — conseguiu fazer com que a Tailândia debelasse a COVID-19 com apenas 9.636 casos e 67 mortes (dados de 07 de janeiro de 2021). Com 64 milhões de habitantes, isso significa apenas pouco mais e uma morte para cada milhão de habitantes.
Nosso presidente Jair Bolsonaro também é usado como exemplo (no caso, como contraexemplo) nesse capítulo, por sua ação negacionista desde o início da pandemia. O autor vai enfileirando os exemplos e o que fica mais do que claro é que quem seguiu a ciência conseguiu bons resultados, e quem não seguiu, se deu mal.
Mas o capítulo aponta, também, para a necessidade de um melhor diálogo entre a ciência e a população. Zakaria afirma que a academia é vista com desconfiança pela população porque apesar de os altos índices de educação gerarem melhores condições de vida para quem os obtêm — um pós graduado nos EUA tem renda em média 3,7 vezes maior que alguém que não completou o segundo grau —, a percepção é de que o conhecimento pouco gera de bem-estar para a população em geral.
Olhando a situação sob esse ângulo, Zakaria aponta para a necessidade de um melhor diálogo entre a elite educada e a população com mais baixos índices de educação. Ouvir os dilemas da população e endereçá-los é tarefa fundamental para os que tiveram melhor acesso à educação, para que o abismo criado entre esses dois extratos da população — e que proporciona aberrações como o movimento anti-vacina, o movimento da “Terra plana” e o negacionismo da pandemia — seja reduzido e, preferencialmente, eliminado. A empatia da elite educada será fundamental nesse processo, e tende a gerar benefícios para todos.
Aqui Zakaria faz uma breve recapitulação da evolução da tecnologia digital na segunda metade do século XX e nessas duas primeiras décadas do século XXI. A adoção global de computadores pessoais, em um primeiro momento e, mais recentemente, a adoção global de smartphones, tudo conectado 24 horas por dia à Internet.
Ainda assim, chegamos ao fim dessa segunda década do século XXI com tecnologia suficiente para tornarmos nossas vidas muito mais práticas do que fazemos em nosso dia-a-dia. Em outras palavras: até a pandemia não utilizávamos tanto a tecnologia como seria possível, para facilitar nossas vidas.
Não é muito difícil perceber que a situação mudou bastante — e de forma permanente — desde que a pandemia limitou bastante nossa mobilidade. Aplicativos de videoconferência e — talvez em primeiro lugar — aplicativos para compras on-line explodiram, tornando nossa vida possível sem sairmos de casa. Mas não para por aí, claro. O mundo digital não se resume ao Zoom e ao iFood: hoje podemos nos submeter a consultas médicas remotas, podemos resolver problemas bancários por telefone, e por aí vai. Os exemplos são inúmeros.
Essa mudança, segundo Zakaria, mesmo não se mantendo em sua totalidade após o fim da pandemia, sinaliza um quadro que tende a ser permanente. A pandemia potencializou e acelerou a adoção das tecnologias digitais, que chegaram para ficar.
O autor comenta ainda sobre o estado de desenvolvimento de novas tecnologias digitais e aos poucos estão se tornando prevalentes, apesar de ainda estarem em rota de desenvolvimento. Exemplo maior é a Inteligência Artificial, que está em processo acelerado de desenvolvimento e de adoção. Ainda assim, esses novos componentes cibernéticos ainda estão em sua infância, e a capacidade computacional que exibem é bastante limitada. Contudo, Zakaria projeta um futuro — admitidamente não próximo — em que as inteligências artificiais, aliadas à robótica, vão realizar a maioria das tarefas hoje a cargo de seres humanos.
Nesse ponto temos uma discussão sobre o que deve acontecer com a Humanidade em um momento em que o trabalho não seja mais necessário. O autor avalia a situação do lado de seu país — rico, capaz de acomodar grande parte de sua população (senão toda) nas novas condições. Ele discute atividades a serem desenvolvidas pelos cidadãos, basicamente para preencherem o tempo, e invoca George Jetson, o icônico personagem da Hanna-Barbera que trabalhava duas ou três horas por dia, apertando um botão aqui e outro ali.
Obviamente que o pensamento volta para nosso país e o que se vê é uma situação bem menos agradável no cenário projetado por Zakaria. Não teríamos condições de financiar uma infraestrutura que trabalhasse para que todos os brasileiros pudessem cultivar hobbies o dia todo. Mas esse cenário é, confessadamente, hipotético e distante demais para que nos preocupemos com ele.
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Semana que vem analisaremos as cinco lições remanescentes de Fareed Zakaria para o mundo pós pandemia. Até lá.
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